Esquecida a precoce malícia,
a ânsia que enseja o vício,
por ora.
Por ora,
substituída a já adulta amargura,
que faz dos pueris olhos
faíscas de perscrutação.
E transformados os gestos rudes,
que a aprendizagem pela dor
assim os fez, ariscos.
Mas, por ora, transformados.
Por ora,
desfeita a farsa
(que finge força),
ausente a fronte
(que afronta).
Por ora, alheios
de tudo que lembre
fome, febre, fedor,
frestas, frio e dor,
todo pesadelo familiar:
paredes lamúrias, sem lar.
Por ora, liberalmente distraídos
(ou distraidamente libertos?),
os meninos da favela
brincam de escorregadia felicidade
na vertiginosa enxurrada.
Mas não vacilam, que na favela
a vertigem é a própria vida.
E, porque jamais amestrados,
ensaiam inusitadas fantasias,
danças e passos (de ousadias ou orações?)
E, no cenário de chão e chuva,
por ora, explode o poder
de esplêndida espontaneidade!
Ah, essa estranha coreografia
Da inesperada liberdade!...
Deslizante ventura,
que emoldura de brilho
a nua paisagem do morro,
por ora...
Até que a liberdade se estranhe
ou o sol se apresse em voltar.
Ernesto Henriques da Silva,
Publicado no livro do 2º Concurso de Conto e Poesia de Valinhos, em 1985.